Cartas a um jovem memorialista

Cartas a um jovem memorialista

*Fernando Neubarth

Uma única coisa é necessária: a solidão. A grande solidão interior. Ir dentro de si e não encontrar ninguém durante horas é a isso que é preciso chegar. Estar só, como a criança está só.
Rainer Maria Rilke (1876-1926)

Faltava pouco, em breve cruzaríamos o Vltava. Doze de junho de 2001. Retornávamos do interior, mais precisamente de Mariánské Lázne, cidade termal que eu conhecia pelo nome alemão, Marienbad. Apesar do horário, ainda não escurecera totalmente e tudo denotava indefinições; de matizes, ora víamos aqui e ali luzes sendo acesas e também de paisagens. Depois de tanta plasticidade e natureza, agora prédios abandonados, vagões parados, postes, muros, estruturas obsoletas acumulando-se quanto mais próxima a cidade, nada parecido com aquela Praga de contos de fadas que esperávamos rever logo adiante.

Foi quando ele, percebendo que nossas esposas haviam emendado uma conversa sem fim, iniciou a falar num tom algo confessional, algo de desabafo, ora parecendo dirigir-se a mim, ora apenas a si mesmo: – Outro dia fiquei avaliando meus certificados, diplomas e um sem número de manifestações, homenagens, placas e medalhas de mérito, recebidos ao longo de minha carreira e questionei-me da valia. A quem poderia interessar toda aquela história?

Dúvidas existenciais, limites, futuro, pesos, medidas, caminhos, escolhas, vaidades? O atrito das rodas sobre os trilhos, repetitivo, contínuo e, subitamente, a sensação de que a composição toda se descarrilharia. Não devo ter dito nada importante, creio que compartilhávamos naquela hora a mesma solidão interior de que fala Rilke e que utilizo como epígrafe nesse texto.

Aquela conversa me marcou e passei a admirar ainda mais o eminente professor que me honrava com suas reflexões em tom de confidências, dessas que mesmo entre velhos amigos raro acontecem. Eu era apenas alguém que o acaso tinha feito encontrar no dia anterior, sob a chuva fina que caía na Ponte Carlos e a quem ele perguntou se planejara algo para o dia seguinte. Ainda havia um dia livre antes do congresso e da chegada de outros colegas, chegáramos com antecipação à cidade. Pouco nos conhecíamos. Ambos os casais alegramo-nos pelo encontro, já num sentimento de familiaridade que mais aproxima em terras distantes. Eu disse que pretendia ir a um certo lugar, estava determinado por inexplicável instinto a conhecer Marienbad, onírica fantasia de antigas leituras. Sem referências concretas, mas ele não quis razões nem porquês e prontamente disse: – Iremos juntos!

Temi que tal confiança acabasse em brutal frustração. Na manhã seguinte embarcamos num velho vagão, o vermelho desbotado dos assentos da nossa cabine flertavam em sinal de alerta e a preocupação aumentaria ainda mais à medida que o percurso parecia prometer o nada. Com exceção ao fato de cruzarmos por Pilsen e o refrigério dessa evocação, o percurso se fez de uma sucessão de deploráveis estações ferroviárias, ruínas da ainda recente derrocada do regime autoritário. A última, nosso destino, tão desolada que motivou a imediata decisão do Professor: – Retornaremos no “primeiro horário!”

Sentindo-me um irresponsável, mas ainda apostando no instinto que me motivara àquela fantasia, tossi em alemão e consegui me comunicar com a senhora tcheca responsável pela bilheteria. Assim soube que, ao contrário do que é tão comum em localidades européias, o centro não era ali. Paguei as passagens de uma espécie de ônibus-jardineira e convenci o “grupo”, o distinto e importante casal e minha sempre confiante companheira de semelhantes aventuras a seguirmos, afinal tínhamos chegado até ali e ainda restava um tempo até o “primeiro horário” para a viagem de volta.

O que viveríamos, o espanto de uma beleza inaudita e do não planejado, memorável intervalo de experiência estética e sensorial, merece um outro relato mais completo. Mas talvez até por tudo isso, findando o dia de proveito pleno, agora, voltando no “último horário”, o questionar-se de toda uma vida.

Essas lembranças assomam, tantos anos depois, quando é o Professor Adil Muhib Samara que nos conduz a um passeio. Aproveito-as para a apresentação do livro “Muitas vidas, uma só memória”, mas que também poderia se chamar “Uma vida, muitas memórias”.

Mais do que um registro autobiográfico, a saga dos pais imigrantes libaneses retrata um Brasil que é comum a muitas genealogias. Uma pátria de heroísmos anônimos tangenciados pela grande História, mas que em verdade constituem a sua própria base. A vocação pela Medicina, a descrição da vida de estudante entremeada de fatos pitorescos, o início da atividade clínica em Campinas, o interesse pela cátedra, a carreira acadêmica, a família. Em paralelo a tudo isso, o Professor segue em aulas, lições na melhor das didáticas e sabor de boa crônica. Medicina muito se aprende assim, também a forma de exercê-la, a partir de vivências. Ele discorre e testemunha em especial pela Reumatologia. É um de seus notáveis, sem exagero meu nesse destaque. Não bastassem memórias, ainda nos propõe reflexões à Arte Médica e ao Ensino. Faz de inventário homenagens recebidas e não deixa de nominar quem esteve por perto e lhe fez diferença. Diferença que agregou valor, o de melhorá-lo.

O espaço para a apresentação de uma obra não deve ser muito longo, assim como não foi distante o trecho que, naquele dia, seguiria o trem até chegarmos à Estação Central para um revigorante café no Fantova Kavárna, uma das últimas jóias arquitetônicas do então império austro-húngaro.

Saúdo o Professor Samara e agradeço por compartilhar sua amizade e suas histórias. Sei que há ainda muitas outras e por elas aguardamos.

Talvez fosse mais apropriado, ainda a propósito de Praga e de um de seus filhos, repetir o que escreveu Rilke nas “Cartas a um jovem poeta”: – “Por isso, meu caro senhor, apenas me é possível dar-lhe este conselho: mergulhe em si próprio e sonde as profundidades onde sua vida brota; na sua fonte encontrará a resposta a sua pergunta – Devo criar? -. Aceite essa resposta, tal como lhe é dada, sem tentar interpretá-la. Talvez chegue à conclusão de que a arte o chama. Nesse caso, reconheça o seu destino e tome-o, com o seu peso e a sua grandeza, sem jamais exigir uma recompensa que possa vir do exterior. Porque o criador deve ser todo um universo para si próprio, tudo encontrar em si próprio e na Natureza à qual toda a sua vida é devotada.”

Encontramos Goethe na visita a Marienbad naquele dia inesquecível e também não tenho dúvidas de que Rainer Maria Rilke esteve conosco no trem de retorno a Praga.

*Fernando Neubarth – Acadêmico titular da Cadeira 44. Especialista em Clínica Médica e Reumatologia, foi presidente da Sociedade Brasileira de Reumatologia – SBR (2006-2008). Exerceu diversas atividades na SBR e na Liga Panamericana de Associações de Reumatologia – PANLAR. Escritor de literatura de ficção, autor de livros de contos, crônicas e participação em antologias.