A impossibilidade da despedida é um dos aspectos mais difíceis destes tempos difíceis de pandemia. Em Porto Alegre ou no solo sagrado da região conflagrada da Judeia.
Por Fernando Neubarth, no caderno GZH de Zero Hora, Porto Alegre.
Médico e escritor. Acadêmico titular da Cadeira 44.
“For death is not the end
And I’ll see you in my dreams.”
Bruce Springsteen
Em Porto Alegre, ao lado do hospital onde estava meu amigo, há uma ponte. Sobre a ponte, o distraído que plantava palmeiras seguiu seu trabalho sem se dar conta que atravessava o riacho. Resultado: fez o que parecia impossível, e da aparente ilusão, uma realidade. É só olhar bem, acima da ponte em direção aos céus erguem-se majestosas palmeiras, abaixo, onde a inocente ignorância botânica e o senso estético adivinhariam raízes em igual proporção, o vazio. O vão livre, a magia e o mistério.
Há coisas que não se veem. Aprendizados demoram, e há malas que vem de trem. Houve um tempo em que ter um lenço branco, limpo, bem passado, era estar preparado para qualquer eventualidade no trajeto, do suor à lágrima, a esfoladura na queda, da proteção no assento empoeirado ao armistício na declaração de uma guerra.
Tenho usado máscaras, mas sinto falta de lenços. Especialmente à beira do cais.
O silêncio contrito daquele homem já é uma das imagens mais eloquentes no inventário que restará deste tempo de pandemia. A figura do jovem sentado no parapeito da janela de um hospital palestino na cidade de Hebrom, na Cisjordânia, correu o mundo. Numa zona conflagrada, não restou a possibilidade de qualquer outro sentimento que não o da empatia com o sofrimento do filho velando o sofrimento da mãe, internada no hospital sem poder receber visitas.
A mãe de Jihad Al-Suwaiti (foto), de 30 anos, era uma senhora idosa e já vinha sofrendo de um câncer. Ela teve de ser internada no início de julho. A família foi impedida de entrar no hospital devido ao risco de contaminação pela covid-19. O filho a visitou todos os dias até a sua morte, no dia 16 daquele mês. Todos os dias, escalava as paredes externas do hospital até a janela do terceiro andar para acompanhá-la pelo lado de fora do quarto onde ela estava.
Situada na Judeia, Hebrom é a maior cidade da Cisjordânia e é considerada sagrada por judeus, cristãos e muçulmanos. Hebrom significa “confederação”, no sentido de amizade, aliança. Palco de vários eventos históricos, é conhecida sobretudo pelos fatos ligados a Abraão.
Não muito longe do hospital onde Jihad ia visitar a mãe fica o Túmulo dos Patriarcas. Para os judeus, o lugar é chamado Me-arat Hamachpelah, em hebraico, o que significa “o túmulo das duplas sepulturas” e, segundo a tradição, lá estão enterrados casais bíblicos importantes. Em Gênesis 49: 29-31, acompanhamos a expressa recomendação de Jacó aos filhos no leito de morte: “Eu me congrego ao meu povo; sepultai-me com meus pais, na cova que está no campo de Efrom, o heteu”. E ele argumenta: “Ali sepultaram a Abraão e a Sara sua mulher; ali sepultaram a Isaac e a Rebeca sua mulher; e ali eu sepultei a Léa”. Os árabes o denominam Haram el Khalil, “o lugar sagrado do amigo (de Deus)”, Abraão.
Kalil significa “amigo”, “amigo chegado”, “camarada honorável”.
A expressão é usada quando se fala de alguém muito estimado. Aquele a que me refiro no início da crônica era um destes; e também era esse o seu nome. Por conta de um tabelião, devem ter mudado para Calil, com C. O pai veio do Líbano, de terras próximas àquelas onde Jihad sentou-se à janela do hospital para ver sua mãe. Nas histórias desses Calil, a mesma ligação forte com o respeito ao umbilical cordão que nos une a um vínculo de identidade familiar, tribal, necessário também a um sentimento de pertencimento e transcendentalidade. Ao perguntar suas origens, a resposta é a mesma:
– De onde viemos?
Das montanhas, claro! Descendentes dos fenícios da cidade de Jounieh!
Para além da simbologia religiosa e histórica, ritos de passagem são importantes para a nutrição dos sentimentos da humanidade, uma questão de saúde. Este tempo gris não tem nos deixado exercer o sagrado direito a um adeus. Não consegui me despedir desse amigo. Nem do Henrique, o pai, nem do Chinês, da Simone e do Paulinho…
Mas, dentre tantas coisas que o amigo Calil me ensinou, aquela sua maneira de encerrar qualquer encontro. Presumo que tenha aprendido o bordão quando ainda em Santa Maria era conhecido por “Queijo”, astro do basquete estadual. Antes de vir a Porto Alegre para exercer a medicina e encontrar a Gi. Provavelmente o ouvira em ondas radiofônicas imigradas da Argentina, entre tangos e chiados. Ele se despedia com um:
– Tchau. E gracias!
O agradecimento fazia-se de lenço branco; pode ser útil, garantia de não deixar nada para trás.
É preciso plantar palmeiras no trajeto e acreditar que crescerão, mas haverá no caminho uma ponte, uma passagem que se ergue sobre o mistério daquilo que não vemos. Que tenha razão o poeta, que a morte não é o fim e nos veremos em sonhos. Contudo, é bom estar preparado. Fica como mais uma lição:
– Amigo, tchau e gracias!