A Serendipidade e a Reumatologia

A Serendipidade e a Reumatologia

A sorte favorece as mentes bem preparadas
Louis Pasteur

* Dr. José Marques Filho

A Ciência, reconhecidamente, desenvolve-se através de pesquisas rigorosas e de análises multifatoriais racionais.

Entretanto, não se pode deixar de reconhecer o importante papel da boa sorte e eventos acidentais nos avanços da ciência, em geral e, na Medicina, em particular.

Em sua obra Sementes da descoberta, Beveridge elenca três tipos de descobertas casuais: justaposição de ideias (“insight”); intuição do tipo eureca (achei!) e serendipidade (descoberta acidental feliz).

A palavra serendipidade (em inglês, serendipity) é mais um anglicanismo, que podemos definir como empréstimo linguístico, que enriquecem sobremaneira nosso já rico idioma.

Interessantemente, a palavra serendipidade tem sua origem muito bem definida – esse neologismo foi citado em uma carta do escritor Sir Horace Walpole a um de seus amigos, em 28 de janeiro de 1754, referindo-se às descobertas ocasionais e felizes dos três filhos do rei Giaffer, descritos no livro Os três príncipes de Serendip, publicado em Veneza em 1557 por Tramezzino.

Destaque-se que Serenpip era o nome antigo do Ceilão (atual Sri-Lanka).

A lista de exemplos de descobertas famosas na ciência e na tecnologia é enorme. Entretanto, nem sempre as descobertas são frutos somente de inteligências superdotadas e de muita criatividade. Grande parte dos avanços foram descobertos por acaso, revestindo-se de histórias fascinantes que revelam o verdadeiro espirito inerente da curiosidade do ser humano.

Acidentais e importantes, inúmeras são as invenções que utilizamos em nosso dia a dia sem mesmo conhecer suas curiosas histórias – por exemplo: o pão, o vinho, o microscópio, o velcro, a dinamite etc.

Na área médica as descobertas serendípicas são inúmeras – vacinas, penicilina, Rx e muitas outras.

Talvez, o exemplo clássico e mais marcante de serendipidade na área da Medicina e, o mais citado na literatura, é a descoberta da penicilina por Alexander Fleming.

Existem diversas versões. Esta é a que dou fé.

Alexander Fleming nasceu em Lochfield, na Escócia. Homem baixo e magro, escolheu dois esportes, que praticou por toda vida – natação e tiro com rifle (foi um exímio atirador).

Graduou-se em Medicina na Universidade de Londres em 1906. Empregou-se como assistente no Departamento de Inoculação do Saint Mary, onde trabalhou até se aposentar.

Fleming era descrito como discreto, humilde, introvertido e “chato”, por seus alunos e colegas.

Em 1928, o já experiente assistente estava trabalhando com cultura de stafilococos em seu laboratório. Nessa altura milhões de esporos de Penicillium notatum deviam estar flutuando no ar do laboratório de Fleming, porque no andar de baixo um perito em bolores cultivava essa espécie de fungo.

Como estava saindo de férias por duas semanas, ele deixou a bandeja na bancada do laboratório, pronta para ser colocada na incubadora quando voltasse de férias.

Uma incrível e inesperada onda de calor assolou Londres nas férias de Fleming, fazendo que as culturas de stafilococos crescessem como se tivessem sido colocadas na estufa, local mais apropriado.

Ao voltar de férias Fleming notou que um profuso crescimento das bactérias cobria boa parte da placa de ágar-ágar da cultura, mas sua atenção voltou-se para um evento, que considerou muito interessante, uma ampla área em volta do crescimento circular do “mofo” não apresentava stalilococos.

Resolveu estudar esse fenômeno.

Descobriu que o fungo produzia uma substancia “mortal” para as bactérias e resolveu chamá-la de “penicilina”.

Vale a pena destacar todos os felizes acasos que ocorreram nesta marcante história da ciência: os stafilococos eram sensíveis ao Penicillium notatum (poucas bactérias o são), a presença dos esporos do fungo que inundavam o ar do laboratório (esta espécie é uma das poucas que impedem o crescimento dos stafililocos), a onda de calor londrino e o mais surpreendente – se Fleming tivesse colocado a cultura na incubadora, o fungo não teria crescido!

Essa fantástica sucessão de felizes acasos e, os simples halos de falta de crescimento bacteriano, só chamaram a atenção do fantástico e genial pesquisador devido à sua curiosidade científica, atributo de todo grande pesquisador.

Na área da Reumatologia, após refletir profundamente sobre as fantásticas descobertas e avanços científicos de nossa área, não encontrei um exemplo serendípico típico, mesmo vasculhando as obras dos professores Hilton Seda e Viana de Queiróz.

Segundo esses respeitáveis professores, o final da década de 1940 foi paradigmática para a reumatologia.

Num curto espaço de tempo, três grandes descobertas mudaram o rumo da reumatologia: o fator reumatoide (descritos por Waaler e confirmado por Rose, em 1948), a célula LE (descrita por Hargraves em 1948), e a cortisona (Hench e seus colaboradores, em 1949).

Estas importantes descobertas foram frutos de intenso trabalho, utilizando metodologia adequada e experiência em pesquisas básicas, vivencia e observação clínica meticulosa.

A descoberta da cortisona tem uma história de mais de duas décadas e, definitivamente, não foi fruto do acaso.

O jovem e genial reumatologista Philip Hench, médico e investigador da Mayo Clinic de Rochester (EUA), no ano de 1929, observou que uma paciente com artrite reumatoide apresentou intensa melhora de seu quadro após desenvolver icterícia. Quatro anos após publicou essa observação em sete pacientes com artrite reumatoide. Em 1938 já reunia uma casuística com 38 casos semelhantes ao primeiro e verificou que outras situações como gravidez, infeções e pós-operatórios poderiam também melhorar o quadro clinico de artrite reumatoide.

O meticuloso clinico postulou que essas remissões poderiam ser devidas a existência de uma substância desconhecida, que denominou substância X.

Nessa altura trabalhava na mesma instituição Edward Kendall, um bioquímico que investigava hormônios produzidos pela suprarrenal.

O conhecimento que essa glândula apresentava resposta no pós-operatório e que a fadiga intensa da Doença de Addison era idêntica à fadiga da artrite reumatoide, levaram Hench a imaginar que a substancia X poderia ser produzida pela suprarrenal. Esse complexo raciocínio clínico, levou a descoberta de que a substancia X era o composto E (17 hidroxi – 11 dehidrocortisona, um dos hormônios descobertos por Kendall.

Esta descoberta e sua utilização inicial em pacientes com artrite reumatoide é considerada uma das dez mais importantes na história da Medicina.

Philip Hench, Kendall e o polonês Tadeu Reichstein receberam o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia em 1950, menos de um ano após a fantástica descoberta.

REFERÊNCIAS

  1. Beveridge WIB. Sementes da descoberta científica. São Paulo: ed. T.A. Queirós/Edusp, 1981.
  2. Viana de Queiróz M, Seda H. História da Reumatologia. Porto Alegre: Editora Kalligráphos, 2007.

* Dr. José Marques Filho, titular da Cadeira 42 da Academia Brasileira de Reumatologia