POEMA PARA UM LEPRECHAUN

POEMA PARA UM LEPRECHAUN

Em Global Rheumatology (https://bit.ly/3FLIwkf) também em espanhol e inglês, artigo em memória a Morton Scheinberg, publicado neste dia 11/10/2021:


POEMA PARA UM LEPRECHAUN – Fernando Neubarth

Lay your ear close to the hill.
Do you not catch the tiny clamour,
Busy click or an elfin hammer,
Voice of the Lepracaun singing shrill
As he merrily plies his trade?

William Allingham – The Lepracaun (no original com a e sem o h), Or, Fairy Shoemaker.

(Esse poema do Séc. XVIII descreve o som da batida de um duende sapateiro: “Aproxime o ouvido da colina. Você não percebe o pequeno clamor da agitada batida do martelo élfico, a voz do Leprechaun cantando estridente enquanto ele alegremente se dedica a seu ofício?”)

A primeira vez que o vi, ele estava apoiado displicentemente na parede do auditório. Embaixo do braço, bem segura pela axila, uma revista dobrada.

O ano, 1985. Meu primeiro evento na especialidade, Jornada Cone Sul de Reumatologia, em Curitiba e no qual, posso afirmar, nasceu esse sentimento muito próximo ao fascínio pela Sociedade Brasileira de Reumatologia, a nossa SBR. Uma agremiação onde todos se conheciam, um espírito familiar que iria se confirmar ao longo desse tempo, de relações fraternas e amizades perenes, sem faltar, contudo, como em qualquer grupo de irmãos e primos, entre abraços e manifestações de afeto, outros humanos sentimentos, disputas, ciúmes, contendas. Naquela ocasião em especial, havia a eleição, entre dois grandes professores, Adil Muhib Samara e Wiliam Habib Chahade, daquele que organizaria em terras brasileiras o Congresso da International League Against Rheumatology (ILAR), a se realizar no Rio de Janeiro, no então ainda distante 1989. Uma sublime efervescência agitava o evento, acirrando um clima de disputa algo juvenil, mobilizando torcidas como num jogo de equipe rivais em fim de campeonato.

Mas essa é outra história. Quero voltar àquele tipo encostado à parede naquela manhã de novembro. No palco, outro de nossos grandes mestres discorria sobre uma das tantas patologias de nossa especialidade, tão rica em sinais, sintomas, deformidades típicas e conseqüências nefastas e que à época pareciam fadadas a uma inexorabilidade, tão acre quanto aparentemente natural. Nosso consolo de aprendizes era a certeza que viveríamos de uma permanente prática investigativa, um imenso jogo de quebra-cabeças a formar mosaicos coloridos e sempre inaugurais. Em paralelo, a convicção de que medicar é também cuidado, acolhimento e, quando nada mais resta, empatia, solidariedade em infusões de esperança.

Quando a sessão se encaminhava para o seu final, o sujeito alto desencosta-se, com a mão direita desembainha o sabre, digo, a revista até então segura na axila esquerda e, com passos determinados que lembravam um gato-espadachim, aproxima-se do palco. Pede a palavra. Com um golpe certeiro anuncia a mais recente informação científica, um estudo recém-publicado alhures e que contradizia total e cabalmente o que acabara de professar daquele púlpito um agora derrotado Golias.

Foi assim que conheci Morton Aaron Scheinberg. Em sucessivos encontros, o padrão foi se fazendo mais ameno. Aquela figura antes ameaçadora, provocativa, foi se revelando um eterno acendedor, não mais de pavios explosivos, mas de instigantes rastilhos de luz.

Não foram poucas as trocas de mensagens e telefonemas. O amigo Jorge Renato Dib, também reumatologista em Porto Alegre, conta que às vezes ele ligava no meio da tarde entre uma consulta e outra apenas para contar uma história jocosa, uma piada ou algum comentário da nossa singular política nacional. Comigo, na maioria das vezes, fosse o que fosse o assunto, a prosa findava num provérbio em íidiche. Confesso que eu sempre me mantinha preparado e se ele estava em casa, chegava a chamar a esposa e fazia com que eu repetisse o que dissera: – Cecília, o Neubarth sabe íidiche! Ato contínuo entrava em contato com o professor Isídio Calich, outro grande amigo, e a conversa já seguia como a de vizinhos de um pequeno povoado, um “shetl”. Sendo Isídio também gaúcho de origem, ele o desafiava, queria que descobrisse com conhecidos do sul o nome do rabino que por certo me circuncidara, – Não pode ser, o Neubarth não pode ser gói!

Hoje eu comentaria com ele, relembrando essas histórias, que – com o tempo, até o urso aprende a dançar. Em íidiche, é claro: “Mit der tseyt, afilu der ber lernz tsu tantsn” e como sempre provocaria nele aquele riso macio e algo melancólico de quem volta à infância e sabe o valor de rir de si mesmo. “Lomir fun ales lachn, veln mir besser machn”, é melhor achar graça do que sofrer.

A partida de Morton Aaron Scheinberg (12.11.1944 – 27.09.2021) deixou-nos a todos surpresos e tristes. Referência na área da reumatologia não só no Brasil, mas internacionalmente. Formado em Medicina pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, com doutorado em Medicina pela Boston University e livre docência em Imunologia pela Universidade de São Paulo. Em 2012 recebeu o título de Master pelo American College of Rheumatology – ACR. Especialista em reumatologia e imunologia clínica, atuava principalmente nas áreas de autoimunidade, terapêutica e diagnóstico, em hospitais como o Albert Einstein, Abreu Sodré e Beneficência Portuguesa, na clínica particular, na participação de pesquisas clínicas e na condução de simpósios e conferências.

Em 2006, quando assumi a presidência da SBR, quis aproximá-lo à vida societária e criei um novo cargo, uma representação junto ao American College of Physicians (ACP), do qual ele era membro e logo iríamos anunciar a possibilidade de um programa internacional de fellowship, financiado pela entidade, e que teve como primeira bolsista a professora cearense Marta Maria das Chagas Medeiros, brilhante colega de Fortaleza.

Para além de tantos predicados, Morton Scheinberg sempre manteve aquele mesmo espírito inicial de curiosidade científica e suas intervenções em qualquer reunião deixaram aquele tom competitivo para tornar-se um desafio permanente de colaboração e busca de novos conhecimentos. Pode se dizer que os palestrantes não mais o temiam, mas se preparavam para responder as suas perguntas, que muitas vezes serviam de estímulo a novos questionamentos e incitação à continuidade de alguma pesquisa por um viés inovador. Pesquisador incessante e magnífico produtor de artigos, não sem justificado orgulho alertava numa freqüência admirável a publicação de papers nas melhores e mais conceituadas revistas científicas internacionais.

Mas se havia aí entusiasmo, tornava-se enternecedor quando, em qualquer encontro, viagem ou oportunidade, sempre ao lado de sua Cecília, falava nos filhos e netos. Sobre a importância do registro em papers eu lhe diria, como quem fala da Lei: “Az ess shteit nisht, zogt men nisht” – o que não está escrito não conta. Em relação à família concordaríamos também: “Imetim iz gut, ober in shtib iz besser” – em toda a parte é bom, mas em casa é melhor!

Lembrando tudo isso e seu sorriso característico, um jeito meio irônico de entortar a boca, impossível não lembrar de uma outra de suas paixões, o basquete, que praticava e o Boston Celtics, seu time de predileção, cuja logomarca decorava sua identidade no Whatsapp. Aquele duende, um leprechaun apoiado em uma bengala, sorrindo e piscando com astúcia o olho esquerdo, chapéu, gravata borboleta e colete ornados de trevos verdes, símbolos da sorte. Não tenho dúvida que, tão logo passarmos essa pandemia e os eventos voltarem a ser presenciais o reencontraremos sempre que um espírito maroto e vivaz desafiar com sua curiosidade e despertar questionamentos quebrando as falsas certezas de uma ciência em constante mutação. Assim também se faz o aprendizado e quem conhece um pouco de basquete e o Boston Celtics sabe que os principais fundamentos desse esporte são: passe, drible, arremesso, lance livre e rebote. Dessa maneira foi que vi Morton jogar desde o primeiro dia que o conheci. Também já ouvi que os duendes sempre estão um pouco além do arco-íris, onde também se encontram potes de ouro.

É a vida: “Der mentsh tracht, und Got lacht”. O homem planeja e Deus ri.