*José Marques Filho
Eu tenho um caso de amor com a cloroquina.
Vi, nos meus longos anos de prática reumatológica, quase milagres com esse fantástico fármaco em pacientes com lúpus eritematoso, artrite reumatoide, osteoartrite nodal erosiva e até em pacientes com reumatismo palindrômico (ele existe, podem acreditar).
Tudo começou nas encostas orientais dos Andes, da Colômbia à Bolívia mais ao sul, em tempos que a bruma dos tempos esconde.
No alto dos Andes a cerca de três mil metros de altura, cresce uma árvore, cuja casca contém uma molécula alcaloide que ajudou a mudar nossa civilização.
Nessa topografia do novo mundo, crescem cerca de 40 espécies dessas árvores, todas do gênero Cinchona.
As propriedades da casca da Cinchona eram bem conhecidas pelos habitantes nativos, principalmente como excelente remédio para a febre.
Existem inúmeras histórias como os primeiros exploradores europeus descobriram o efeito antimaláricos da casca da cinchona.
Um desses relatos envolve a Condessa de Chinchón, dona Francisca Henriques de Rivera, cujo marido, o Conde de Chinchón, foi o vice-rei espanhol do Perú de 1629 a 1639.
Em certa ocasião, dona Francisca ficou muito doente com malária. Após fracasso dos tratamentos tradicionais europeus, seu médico recorreu a um tratamento dos nativos – a cinchona. A espécie recebeu o nome da condessa, que sobreviveu à grave doença.
Sabe-se hoje que o quinino, presente na casca da cinchona, foi a molécula que salvou a esposa do vice-rei.
A palavra malária significa “mal ar”, conhecida desde Hipócrates. Acreditava-se que a doença era resultado de cerração venenosa e vapores deletérios emanados de pântanos baixos.
Sua causa, sabemos hoje, é um parasito microscópico, que talvez seja o maior responsável por mortes humanas em todos os tempos.
Ainda hoje as estatísticas demonstram números assustadores. Segundo estimativas ocorrem cerca de 300 a 500 milhões de casos por ano no mundo inteiro, com dois a três milhões de mortes anuais, sobretudo em crianças na África.
Existem quatro espécies de parasitos da malária, sendo o mais letal o Plasmodium falciparum.
Os esforços para sintetizar a verdadeira molécula de quinina exigiram incansável trabalho dos químicos, sendo completamente demonstrada apenas ano de 2001, através dos trabalhos do professor Gilbert Stork, da Universidade de Columbia.
Ainda hoje o quinina continua sendo colhido em plantações na Indonésia, na Índia, no Zaire, para onde foram levadas e em quantidades menores no Perú, na Bolívia e no Equador.
É usado hoje principalmente na agua de quinina, na agua tônica e na produção de quinidina, um antiarrítmico.
O hábito inglês de tomar quinina como preocupação profilática contra a malária resultou do hábito de misturá-lo ao gim, criando-se um dos meus drinks preferidos – gim-tônica.
O quinina é um derivado da molécula de quinoleína.
Amplas pesquisas sobre drogas antimaláricas durante a Segunda Guerra Mundial resultaram no derivado 4-aminoquinoleina, hoje conhecido como cloroquina. Por mais de quarenta anos foi um antimalárico seguro e eficaz. Infelizmente cepas resistentes difundiram-se, rapidamente, nas últimas décadas e compostos como fansidar e mefloquina são os fármacos hoje utilizados.
A utilização da cloroquina na reumatologia tem como primeira comunicação a palestra de Payne, médico do St Thomas Hospital de Londres, em uma conferência de pós-graduação, em 1894. Ele discorreu sobre os possíveis benefícios do quinino em pacientes com lúpus eritematoso.
Entretanto, um artigo publicado por Page em 1951, na prestigiada revista Lancet parece ser o iniciador de uma longa e positiva história da utilização dos antimaláricos nas doenças reumatológicas. O artigo descreve resultados favoráveis da utilização de quinacrine em pacientes com lúpus, com bons resultado nas lesões cutâneas e, também, em dois pacientes que tinham “associação” com artrite reumatoide.
A partir daí, com a síntese da cloroquina, do difosfato de cloroquina e com o sulfato de hidroxicloroquina, sua utilização foi amplamente aprovada, através de estudos bem delineados com metodologia adequada, principalmente em pacientes com lúpus e artrite reumatoide.
Todos nós reumatologistas nascidos no século passado temos ampla experiência com a utilização dos antimaláricos.
Jamais poderíamos imaginar que a lendária cloroquina, derivada do quinino, viria a se tornar a mais famosa controvérsia durante uma pandemia que vem ocorrendo na segunda década do século XXI, com apaixonados debates sobre sua eficácia contra um novel vírus, com alta taxa de contagiosidade e crescente mortalidade.
Nem seria possível imaginar que, em determinado país, o gigante sul americano, surgisse um obtuso e inconsequente defensor da lendária cloroquina. O grande problema é que a imensa população desse populoso país, em virtude da mortalidade do referido vírus, foi reduzindo perigosamente, colocando em risco o futuro da gigante e respeitada nação.
O futuro se transformou em verdadeira incógnita, até para as ciganas de plantão, quando convocadas pelo defensor da lendária e querida cloroquina.
José Marques Filho
Reumatologista
Membro da Academia Brasileira de reumatologia
REFERÊNCIAS
Couteur P, Burreson J. Os botões de Napoleão. Rio de Janeiro: Zahar. 2006.
Payne JF. A post-graduate lecture on lúpus erythematosus. Clin J IV:223, 1894.
Page F. Treatment of lupus erythematosus with mepacrine. Lancet 2:231, 1951.