* Acadêmico Dr. José Marques Filho
“Uma sensação de medo é despertada quando profiro o nome ‘febre puerperal’, pois nenhuma doença aguda é mais terrível do que essa.
Há algo tão tocante na morte de uma mulher que acabou de dar à luz, algo tão pesaroso na frustração de esperanças acalentadas, algo tão lastimável no abandono do recém-nascido indefeso, para sempre daqueles cuidados e carinhos de que tanto necessita, que o coração mais duro é sensível à catástrofe. É uma espécie de profanação.”
Meigs, professor de obstetrícia, 1951
Quando pensamos em um grande personagem húngaro, imediatamente nos vem à mente nomes como o do compositor Franz Liszt, do futebolista Ferenc Puskas, do ator Bela Lugosi ( o eterno Drácula), do matemático John von Neumann, mas raramente nos ocorrerá o nome do injustiçado Semmelweis.
Em seu livro “A peste dos médicos” Sherwin Nuland, cirurgião e professor de Ética Médica e História da Medicina da Yale University School of Medicine, afirma que nada na vida de Ignaz Philipp Semmelweis, um médico nascido na capital húngara, de família de classe média, antecipava o turbilhão no qual se veria envolvido mais tarde.
A sua importância histórica decorre de sua grande contribuição para o controle da febre puerperal, do seu pioneirismo no campo da epidemiologia e seu trágico final de vida.
FEBRE PUERPERAL
Hoje pouco frequente, a febre puerperal em meados do século XIX era o terror dos obstetras e das gestantes.
Mais frequente nas maternidades que nos partos domiciliares, era uma infecção devastadora, altamente letal.
Nessa época a sua causa era desconhecida, já que a descrição de microorganismos como causa de infecções só foi evidenciada após os trabalhos de Pasteur e a teoria microbiana da doença e, posteriormente, com Koch e Lister, no final desse mesmo século.
Entretanto, não se tratava de uma nova doença, mas sim um grande aumento de sua freqüência em meados do século XIX.
Uma das teorias mais antigas para sua etiologia era a interrupção da livre descarga dos lóquios, o líquido que emana do útero após o parto.
A primeira descrição conhecida da febre puerperal pode ser encontrada no Corpus hippocraticum, no livro 1 das epidemias, onde o autor, o próprio Hipocrates ou um de seus discípulos, descreve o caso de “Thasus, esposa de Philinus, que deu à luz uma filha, com descarga normal dos lóquios”. Duas semanas depois, ela foi “acometida de febre acompanhada por calafrios”, bem como dores no abdome e nos órgãos genitais, enquanto sua “descarga loquial cessou”.
Thasus morreu no vigésimo dia dos sintomas, após três dias de coma.
Casos como esses serviram para a descrição hipocrática do De mulierum morbis, um caso típico de febre puerperal semelhante aos vistos em Viena em meados do século XIX.
Foram essas observações que levaram ao 43º aforismo hipocrático: “Se a erisipela do útero acometer uma mulher após o parto, provavelmente se mostrará fatal”.
Segundo Moacyr Scliar, existiam muitas teorias à época dos surtos no século XIX, para explicar a doença, confirmando o velho aforismo médico segundo o qual a abundância de hipóteses é sinônimo de ignorância.
Não havia, também, nem tratamento eficaz nem medidas preventivas e para piorar a situação a doença frequentemente se apresentava sob a forma de surtos em grandes e prestigiosos hospitais.
Os médicos da época se dividiam em duas correntes: os adeptos da teoria do contágio (contagionistas) e os defensores dos miasmas.
Os contagionistas defendiam a tese que a doença poderia se transmitir diretamente de pessoa para pessoa, ainda que o mecanismo dessa transmissão não fosse conhecido. Já os miasmas seriam uma emanação provinda de regiões insalubres, capaz de causar epidemias como a cólera e a malária.
Pode parecer estranho para os padrões e conhecimentos atuais, mas os defensores da teoria miasmática eram os médicos mais jovens e progressistas.
Entre os que defendiam a teoria dos miasmas estavam os grandes obstetras da época, inclusive o mais respeitado deles, o Dr. Charles Delucena Meigs, professor de obstetrícia do Jefferson Medical College, da Filadélfia.
A polêmica sobre as causas da febre puerperal envolveu diversas autoridades médicas, entre elas o norte americano Oliver Wendel Holmes, médico, anatomista, ensaísta e poeta, jovem ainda, em início de carreira.
Esse autor tinha como característica principal aliar um saudável ceticismo científico a um aguçado senso de observação e um rigor metodológico pouco comum para a época.
O jovem realizou um estudo do problema da transmissão da febre puerperal, e chegou a uma conclusão, que era amplamente respaldada por todas as informações que conseguiu coletar:
“A doença conhecida como febre puerperal é tão contagiosa que é frequentemente transmitida de paciente para paciente e pelos médicos e enfermeiras”.
Em seus textos, recomendando medidas para evitar a doença, cita de passagens os trabalhos de Semmelweis, um desconhecido e obscuro médico húngaro que trabalhava no Allgemeine Krankenhaus, o famoso hospital geral de Viena.
PIONEIRO DA EPIDEMIOLOGIA
A história e, particularmente da Medicina, apresenta personagens extraordinários, que mudaram os paradigmas vigentes, inaugurando novas eras, porém, muitos deles à custa de grande sofrimento pessoal.
Esse parece ser o caso deste médico húngaro e sua trágica trajetória.
Quando Ignaz Philipp Semmelweis (1818-1865) nasceu, seu país fazia parte do poderoso Império Austríaco.
Jovem ainda, rumou para Viena para completar os estudos em direito, estimulado por sua família.
Mas, ao tomar contato com os trabalhos de Karl von Rokitansky (1808-1878), resolveu estudar Medicina, graduando-se em1844.
Rokitansky, jovem professor de patologia de Viena, procurava identificar a causa da morte de seus pacientes através do estudo do cadáver e dos órgãos doentes.
Após sua graduação, Semmelweis tentou vaga na Clínica do professor Joseph Skoda, famoso professor de Clínica Médica, mas não conseguiu.
Foi então aceito em 1846, como assistente da Primeira
Clínica Obstétrica do Allgemeine Krankenhaus.
Enquanto, aguardava para assumir seu cargo, passou meses acompanhando o mestre Rokitansky nas autopsias de pacientes que faleciam no hospital.
A fama da Primeira Clínica de Obstetrícia era que a mortalidade das pacientes superava entre três e dez vezes a da Segunda Divisão, onde as parturientes eram atendidas por parteiras. Essa diferença era inexplicável, segunda a teoria dos miasmas, pois os edifícios eram contíguos.
Notou que a Primeira Enfermaria vivia lotada de estudantes de Medicina e de professores de obstetrícia, o que acarretava aumento da manipulação dos genitais das pacientes, com toques vaginais freqüentes e muitas vezes, desnecessários.
Enquanto trabalhava com Rokitansky ficou impressionado com a freqüência dos casos de febre puerperal que ocorriam, principalmente, na Primeira Enfermaria, e dedicou boa parte de seu tempo para estudar as lesões decorrentes dessa gravíssima infecção, que matava a mãe, mas também, frequentemente, o recém-nascido.
O jovem húngaro dedicou-se inteiramente a estudar essa misteriosa doença e suas nuances.
Enfrentando grandes dificuldades para obter as informações, devido a um sistemático trabalho de sabotagem, ele realizou um amplo estudo temporal sobre a mortalidade das puérperas desde a fundação da maternidade em 1784.
Notou o crescente aumento dos óbitos, chegando em 1846 a uma mortalidade de 11,4% na Primeira Enfermaria e 2,7% na Segunda Enfermaria.
Segundo o professor Fernandes, em seu livro “Infecção hospitalar e suas interfaces na área da saúde”, Semmelweis realizou, antes de John Snow com a epidemia de cólera em Londres, um estudo epidemiológico pioneiro.
Utilizando metodologia adequada, procurou elucidar os elos da cadeia epidemiológica e propor medidas efetivas de controle, contendo todas as etapas clássicas dessas investigações: a definição precisa dos casos, a contagem, distribuição e consolidação dos casos e de fatores predisponentes; a confirmação do surto e a definição de seu período; a formulação de hipóteses e sua confirmação; as medidas de controle e a verificação de sua eficácia, com reorientações quando necessário.
Por sua origem húngara e idéias questionadoras procurando entender e controlar “fenômenos inevitáveis”, enfrentou grandes dificuldades com seus superiores.
Trabalhando com o professor Kolletschka da Medicina legal, autopsiava detalhadamente todas as pacientes, encontrando supurações e infecções generalizadas.
Uma grande tragédia – a morte de seu professor e amigo Kolletschka – foi a chave para entendimento do mistério.
O professor faleceu em virtude de ferimento no braço durante uma autopsia, e em sua própria autopsia foram encontrados os mesmos elementos encontrados nas gestantes de febre puerperal.
Semmelweis então concluiu:
“se os dados das autopsias eram idênticos, não seriam as causas também comuns? Kollestschka morrera duma lesão na qual o bisturi introduzira partículas em decomposição de matéria cadavérica. Os médicos e seus discípulos não poderiam com suas mãos trazer as mesmas partículas ao regaço das pacientes rasgados pelo parto?”.
Estava, aí, explicado as diferenças de cota de mortalidade.
Angustiado, o médico húngaro, chegou a afirmar:
“só Deus sabe a conta das que, por minha causa, desceram prematuramente à sepultura!”.
Uma vez formulada a hipótese, partiu para a elaboração de medidas preventivas: isolamento dos casos, lavagem das mãos com ácido clórico e limpeza rigorosa do instrumental utilizado.
Os casos de febre puerperal foram caindo em freqüência, até que no ano de 1848, a mortalidade na Segunda Clínica (1,33%) foi maior que na Primeira (1,27%).
O médico húngaro continuou tendo grandes problemas de relacionamento e dificuldades de implantação de suas medidas preventivas, pois sua teoria levantava a possibilidade dos médicos e estudantes serem os próprios responsáveis por tantas mortes.
E, para piorar, essa teoria era defendida por um obscuro obstetra, provindo do país mais pobre e subdesenvolvido do império em plena capital do Império.
Semmelweis ganhou mais opositores ainda com sua conduta agressiva e dificuldade de relacionamentos, retrucava àqueles que não acreditavam em sua teoria:
“A sua doutrina assenta nos cadáveres das puérperas, assassinadas pela ignorância. Se vossa senhoria persistir em amestrar os seus discípulos na doutrina da febre puerperal epidêmica, eu – diante de Deus e do mundo – o declararei assassino”.
A irritação, a angústia e a ansiedade foram piorando cada vez mais.
Sua sanidade mental foi se perdendo, acreditando ser vítima de um complô e que queriam matar sua família.
A internação em no manicômio ocorreu a pedido de sua própria esposa, sendo realizada por um de seus melhores amigos.
Pouco tempo após faleceu, vítima de septicemia, decorrentes, segundo alguns autores, de lesões de espancamento durante sua internação.
Segundo o professor Fernandes, a trajetória do médico húngaro é exemplo didático de “Uma história cada vez mais atual e ponto básico para uma reflexão profunda sobre o ensino acadêmico, resistência às mudanças, corporativismo dos profissionais de saúde e as lições da vida e da trágica morte de Semmelweis”.
REFERÊNCIAS
1 – Fernandes AT. Infecção hospitalar e suas interfaces na área da saúde. São Paulo: Atheneu, 2000.
2 – Nuland SB. A peste dos médicos. São Paulo: Companhia da Letras, 2003.
3 – Thorwald J. O século dos cirurgiões. São Paulo: Hemus Livraria Editora, 2001.
* Colaborou com esta publicação o acadêmico Dr. José Marques Filho, titular da Cadeira 42 da Academia Brasileira de Reumatologia (ABR)